sábado, 20 de agosto de 2005

Reintegração de posse em São Paulo, sob violência policial

É lastimável o acontecimento da semana passada, em São Paulo, que envolveu mulheres, crianças, idosos e homens de bem, todos eles humildes e carentes. Com efeito, tratava-se de uma reintegração de posse do Prédio da Luz, ocupado por sem-teto há mais de 2 anos, com direito à presença da força policial militar e à velha utilização de gás pimenta, socos, tapas e pontapés, além do velho e bom cacetete. Ainda, inconformados, os policiais fizeram uso de bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha na multidão.

Ora, o que convém aqui analisar são dois aspectos: a questão da função social da propriedade privada e a própria noção de justiça social e o uso da violência pelo Estado.


No primeiro aspecto, estabelece a Constituição da República que a propriedade atenderá a sua função social. Mas, qual é a função social da propriedade? Vivemos num país de 50 milhões de miseráveis, concentrados de forma irregular e desumana nos grandes centros urbanos do País. Essas pessoas, esses seres humanos, iguais a nós em todos os sentidos jurídicos (mas não econômicos) são submetidas, diariamente, a toda espécie de vexação, privação de condições mínimas de sobrevivência e, quando muito conseguem, não dispõem da menor dignidade enquanto pessoas. Esses mesmos seres humanos, sujeitos de direitos inalienáveis e irrenunciáveis, não têm acesso aos serviços básicos (moradia, saúde, educação, transporte, lazer) que deveriam ser prestados pelo próprio Estado (leia-se, aqui, País), seja através dos programas sociais ou da política social. No caso em tela, os "sem-teto" são aquelas pessoas que não possuem uma moradia (própria ou não). O que se chama aqui atenção é que, mesmo sendo um sistema capitalista de produção, aonde cada um tem que lutar pela sua própria sobrevivência na "selva" de asfalto, há alguns direitos básicos sem os quais os seres perdem a sua qualidade de "humano", que designa a nossa espécie. E um deles é o direito de ter acesso à uma moradia, que proteja o indivíduo e sua família das intempéries (frio, calor), das bestas e das doenças. Mas estamos aqui a falar da propriedade privada. E o que a propriedade privada tem haver com isso? Bem, de acordo com o Legislador Constituinte, aquele grupo que criou o Estado brasileiro, o uso da propriedade tem estar sempre voltado ao bem comum, ao bem da coletividade, aos anseios da sociedade como um todo. É nesse sentido que existem normas que proibem e defendem os vizinhos do uso nocivo da propriedade privada de alguém. Mas o conceito é mais amplo a nível constitucional do que em nível cível. Trata-se de um direito básico da humanidade, e a Constituição brasileira, na busca de uma justiça social, que não só dê a cada um o que é seu, mas, indo além, dê a cada qual aquilo sem o quê ela não pode sobreviver, propôs-se a delegar ao cidadão um direito contra o abuso do poder econômico (de concentração de riquezas, que exclui o pobre do acesso aos bens). Assim, por meio do Estado de Bem Estar Social, modelo econômico também presente em nossa Constituição jurídica, a sociedade "prometeu" à população que a propriedade privada não seria um meio de exploração e de exclusão social, sendo esta promessa feita pela elite brasileira (não só a econômica, mas também a intelectual) ao cidadão comum - que desconhece seus direitos fundamentais.

Entretanto, partir de "pura poesia" (como entendem alguns aplicadores do poder de polícia) para a realidade é constatar o que de mais grave aconteceu nesse incidente. A violência utilizada pelo corpo de intervenção da polícia militar faz lembrar os mais negros momentos de uma ditadura que parece ainda não haver desvanecido dos cenários político e social brasileiros. Não é preciso dizer muito a este respeito, uma vez que as imagens são claras e outra interpretação não parece ser possível. No cumprimento de uma determinação judicial (injusta, porque justiça não pode ser apenas aquilo que provém da caneta de um magistrado), os policiais atiraram bombas de gás lacrimogênio diretamente nos manifestantes, ferindo inclusive repórteres e transeuntes. Ora, não se pode utilizar aquele equipamento militar apontando-o diretamente às pessoas, visto que um disparo com aquela arma na posição horizontal pode matar. Dirigirem-se, por comando superior, aqueles homens fardados, "defensores da ordem estatal", para desocupar um imóvel que servia, até a ocupação, apenas de imóvel expeculativo, com o uso da mais bruta força contra pessoas que só procuravam abrigo (diga-se de passagem que é ainda inverno na Região Sudeste), na presença de crianças e idosos. Foi cometido crime contra a humanidade, pois a aplicação de uma lei (norma positiva) contra um direito fundamental (proveniente de um princípio jurídico, predecessor da própria norma positivada), é um claro atentado contra a justiça social e um reflexo de um Estado de São Paulo totalitário e déspota.

Anda mal aquele Estado membro. Como também andam outros, que despreocupados da sorte a que estão entregues milhões e milhões, só usam da máquina estatal para defender interesses que não os sociais. É lamentável e uma vergonha. Brasil: um País injusto.