terça-feira, 27 de maio de 2008

Petição: Caso Dorothy Stang

O caso Dorothy Stang teve um desfecho inusitado: a absolvição do acusado, suposto mandante do crime, o fazendeiro "Bida", contra a prova dos autos. O texto a seguir faz parte de uma petição online, com o objetivo de incitar os desembargadores do Tribunal de Justiça do Pará à reapreciação do caso. Mesmo que não produza efeitos legais (e não produz...), assinar essa petição é um ato de protesto contra a violência rural no Brasil - é um dever cívico.

Ao: Tribunal Justiça do Estado do Pará
Por cinco votos a dois, o fazendeiro Vitalmiro Bastos Moura, o Bida, foi absolvido nesta terça-feira (6) da acusação de mandante da morte da missionária americana Dorothy Stang, em novo julgamento na 2ª Vara do Júri de Belém (PA).

O advogado Eduardo Imbiriba, que defendeu o fazendeiro, pediu a absolvição de Bida, sustentando a tese de negativa de mando do crime.

O promotor Edson Souza, que atuou na acusação, informou que entrará com um recurso pedindo um novo julgamento no prazo legal de cinco dias. Ele adiantou que vai fundamentar a sua apelação com base no fato de que o resultado do julgamento foi contrária às provas dos autos, que apontavam Bida como mandante do crime.

Edson Souza disse que a apelação será apreciada por uma câmara de desembargadores do Tribunal de Justiça do Pará, e a decisão sobre se haverá um novo julgamento só deverá ser anunciada no fim do ano.

O júri que absolveu Bida era formado por seis homens e uma mulher. Eles acataram a tese da defesa de negativa de autoria de mando do crime. Os jurados, no entanto, mantiveram a condenação de Rayfran das Neves, apontado como o executor do assassinato, que no primeiro julgamento foi condenado a 27 anos de prisão, e agora teve a pena aumentada para 28 anos.

No primeiro julgamento, Valdomiro Bastos havia sido condenado a 20 anos de prisão. Nesta terça, ao ser anunciada a absolvição, o fazendeiro foi imediatamente colocado em liberdade.

A missionária Dorothy Stang foi morta com seis tiros em Anapu, a 300 quilômetros da capital paraense, em fevereiro de 2005. Ela trabalhava com a Pastoral da Terra e comandava o programa em uma área autorizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

NÃO vamos permitir que um absurdo desses aconteça debaixo de nossos narizes ! Assinem agora esta petição pela prisão do responsável direto pela morte de nossa querida irmã.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

O cidadão emudecido e o capitalismo surdo

Nos últimos meses, tenho me debruçado sobre o discurso neoliberal, de forma exaustiva, tentando identificar aquilo que o torna "neo" em função do liberalismo dos séculos XIX e XX. Embora, à partida, tenha pensado que não haveria nada de novo, logo fui levado a concluir que estava redondamente enganado. Apesar disso, pude constatar que alguns resultados sociais dessa nova "política" são semelhantes aos da velha, embora os espaços e as dinâmicas sejam diferentes. Senão, vejamos.

O liberalismo tinha por sustentáculo inicial a idéia de Estado-nação e a unidade social. A partir daí, o controle social se dava em nível interno e, só depois, partia rumo à dominação de outros povos. Assim, o poder era assegurado em nível local, através da prática burguesa de controle da propriedade privada e de duas formas de divisão: a divisão do trabalho e a de classes. Dessa forma, pode-se afirmar que não havia um projeto liberal, mas vários: norte-americano, inglês, francês, alemão etc.

Nesse aspecto, o neoliberalismo atingiu uma escala global; superada a competição irracional entre as burguesias nacionais, essas propagam alianças na partilha de recursos e mercados comuns. Ora, o modelo anterior era falível exatamente porque a competição desenfreada levou ao esfacelamento do mercado interno - guerras -, fazendo com que novas super-potências despontassem no cenário mundial, oriundas de países que antes ocupavam posição subalterna no sistema mundo de produção: China, Índia, Rússia e outros. Interessante observar que, dentre esses vários países, alguns deles fazem uma estratégica "mudança política", com a rápida formação e mais rápido ainda fortalecimento de suas burguesias internas que, após a liberalização ou "abertura", passam a operar em nível global.

Quanto ao sistema ideológico, o propaganda model liberal recebeu uma nova roupagem: globalizou-se com a ajuda das novas tecnologias de informação e, ao invés de valer-se da censura, passou a utilizar um monólogo, isto é, ao invés de combater e revidar os discursos emancipatórios (ou reformistas, ou revolucionários), pregou o fim de todas as ideologias e, com elas, o capitalismo global como síntese histórica da humanidade. Além disso, se a Internet é democrática, porque possibilita a livre expressão, é caótica, ao ponto de fragmentar os grupos e discursos já suprimidos - para não dizer que os tais "portais" são, acima de tudo, uma tentativa de centralizar a produção do saber e da cultura.

Outra questão relevante a ser pensada é a forma imperial do neoliberalismo. À semelhança de seu "ascendente", o neliberalismo também é hegemônico, ou seja, arvora-se em realidade absoluta fora da qual nada existe: tudo deve ser submetido às leis de mercado, à lógica da Economia e à submissão ao Direito. Nesse aspecto, a democracia representativa de baixa intensidade e indireta configura-se como o único sustentáculo do sistema (afinal, é!) e todas as formas de contestação devem ser tratadas como "caso de polícia" ou "assunto de segurança nacional", ou seja, não há diálogo social, nem expressão contestatória que resista aos imperativos do trinômio Lei-Economia-Acumulação.

Ao repensar isso tudo, sou levado a dizer que o monólogo neoliberal (legalista, científico, acéptico e aético) é algo que prejudica a saúde, simplesmente porque revive um cenário mundial de injustiças, exploração e violência, sem que seja possível articular qualquer plano ou ação que se contraponha à sua força e poder ilimitado.

Pensando melhor, talvez seja por causa dessa megalomania que o sistema entrará em colapso: é omnisciente apenas de si, sua omnipresença é inerte e alheia ao sofrimento humano, e sua omnipotência tem por limites a sustentação da vida humana na Terra. Por enquanto, nossa história segue seu rito, num diálogo entre Afrodite e Tifão.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

"A Fome Infame" - por Boaventura de Sousa Santos

(Publicado na Visão em 8 de Maio de 2008)

«Há muito conhecido dos que estudam a questão alimentar, o escândalo finalmente estalou na opinião pública: a substituição da agricultura familiar, camponesa, orientada para a auto-suficiência alimentar e os mercados locais, pela grande agro-indústria, orientada para a monocultura de produtos de exportação (flores ou tomates), longe de resolver o problema alimentar do mundo, agravou-o. Tendo prometido erradicar a fome do mundo no espaço de vinte anos, confrontamo-nos hoje com uma situação pior do que a que existia há quarenta anos. Cerca de um sexto da humanidade passa fome; segundo o Banco Mundial, 33 países estão à beira de uma crise alimentar grave; mesmo nos países mais desenvolvidos os bancos alimentares estão a perder as suas reservas; e voltaram as revoltas da fome que em alguns países já causaram mortes. Entretanto, a ajuda alimentar da ONU está hoje a comprar a 780 dólares a tonelada de alimentos que no passado mês de Março comprava a 460 dólares.


«A opinião pública está a ser sistematicamente desinformada sobre esta matéria para que se não dê conta do que se está a passar. O que se está a passar é explosivo e pode ser resumido do seguinte modo: a fome do mundo é a nova grande fonte de lucros do grande capital financeiro e os lucros aumentam na mesma proporção que a fome.

«A fome no mundo não é um fenómeno novo. Ficaram famosas na Europa as revoltas da fome (com o saque dos comerciantes e a imposição da distribuição gratuita do pão) desde a Idade Média até ao século XIX. O que é novo na fome do século XXI diz respeito às suas causas e ao modo como as principais são ocultadas. A opinião pública tem sido informada que o surto da fome está ligado à escassez de produtos agrícolas, e que esta se deve às más colheitas provocadas pelo aquecimento global e às alterações climáticas; ao aumento de consumo de cereais na Índia e na China; ao aumento dos custos dos transportes devido à subida do petróleo; à crescente reserva de terra agrícola para produção dos agro-combustíveis. Todas estas causas têm contribuído para o problema, mas não são suficientes para explicar que o preço da tonelada do arroz tenha triplicado desde o início de 2007. Estes aumentos especulativos, tal como os do preço do petróleo, resultam de o capital financeiro (bancos, fundos de pensões, fundos hedge [de alto risco e rendimento]) ter começado a investir fortemente nos mercados internacionais de produtos agrícolas depois da crise do investimento no sector imobiliário. Em articulação com as grandes empresas que controlam o mercado de sementes e a distribuição mundial de cereais, o capital financeiro investe no mercado de futuros na expectativa de que os preços continuarão a subir, e, ao fazê-lo, reforça essa expectativa. Quanto mais altos forem os preços, mais fome haverá no mundo, maiores serão os lucros das empresas e os retornos dos investimentos financeiros. Nos últimos meses, os meses do aumento da fome, os lucros da maior empresa de sementes e de cereais aumentaram 83%. Ou seja, a fome de lucros da Cargill alimenta-se da fome de milhões de seres humanos.

«O escândalo do enriquecimento de alguns à custa da fome e subnutrição de milhões já não pode ser disfarçado com as “generosas” ajudas alimentares. Tais ajudas são uma fraude que encobre outra maior: as políticas económicas neoliberais que há trinta anos têm vindo a forçar os países do terceiro mundo a deixar de produzir os produtos agrícolas necessários para alimentar as suas próprias populações e a concentrar-se em produtos de exportação, com os quais ganharão divisas que lhes permitirão importar produtos agrícolas... dos países mais desenvolvidos. Quem tenha dúvidas sobre esta fraude que compare a recente “generosidade” dos EUA na ajuda alimentar com o seu consistente voto na ONU contra o direito à alimentação reconhecido por todos os outros países.

«O terrorismo foi o primeiro grande aviso de que se não pode impunemente continuar a destruir ou a pilhar a riqueza de alguns países para benefício exclusivo de um pequeno grupo de países mais poderosos. A fome e a revolta que acarreta parece ser o segundo aviso. Para lhes responder eficazmente será preciso pôr termo à globalização neoliberal, tal como a conhecemos. O capitalismo global tem de voltar a sujeitar-se a regras que não as que ele próprio estabelece para seu benefício. Deve ser exigida uma moratória imediata nas negociações sobre produtos agrícolas em curso na Organização Mundial do Comércio. Os cidadãos têm de começar a privilegiar os mercados locais, recusar nos supermercados os produtos que vêm de longe, exigir do Estado e dos municípios que criem incentivos à produção agrícola local, exigir da União Europeia e das agências nacionais para a segurança alimentar que entendam que a agricultura e a alimentação industriais não são o remédio contra a insegurança alimentar. Bem pelo contrário.»

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Boaventura de Sousa Santos: Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973). Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick. Director do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Director do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Director da Revista Crítica de Ciência Sociais.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Debate: "Sobre Legalização do Aborto..."

Comentário de Antônio T. Praxedes, publicado em resposta ao texto de Mhauro Garcia intitulado "Sobre Legalização do Aborto...", no blog Garfil.
Olá Mhauro,
muito bom o texto. Penso que ele suscita boas questões para um debate.

1º) Vejo que existe a inserção de uma categoria ou elemento de linguagem que não se adequa ao problema: o termo "criança". Na proposta de despenalização do aborto, o que está em jogo é a remoção de um conjunto de células, chamado na Biologia de "zigoto". O zigoto não é uma pessoa, é a "possibilidade de uma pessoa". Foi por esta razão que o Direito e, no caso mais específico, nos Direitos Humanos, utiliza-se o termo "pessoa", que é o sujeito de direitos. Uma pessoa natural é aquela que nasce com vida. Note que são duas condições: nascimento e vida extra-uterina. A remoção do zigoto deve ser feita enquanto ele não chega a ser propriamente um "feto", ou seja, com um conjunto de características humanas, para além do DNA ou código genético. A intervenção, portanto, deve ser feita num óvulo fecundado. Assim, o uso do termo "criança" parece-me minimamente tendencioso, porque traz todo um apelo emocional à questão do aborto.

2º) Quanto à paternidade, ela é um direito do homem e de uma criança nascida com vida. Se ela traz questões de ordem financeira, ou não, isso vai depender do juízo de valores na qual uma determinada Sociedade está sedimentada. No Brasil, e mais especificamente no Ceará, por exemplo, já existem decisões judiciais que atribuem à mãe a obrigação do sustento da criança, principalmente levando em consideração sua capacidade econômica e seu potencial para o trabalho.

3º) Penso que o problema das drogas é diverso, e incluir nesse debate a pena de morte também é despropositado. Digo isso em função de que, no primeiro caso, trata-se de conduta ou comportamento individual e, nesse aspecto, surgem outras questões, como a proibição do tabaco e do álcool como drogas recreativas (todos sabem que o álcool e o tabaco matam!), e isso faz divergir o debate. No segundo caso, perceba que o aborto clandestino sempre existiu e será a prática a que recorrerão as mães em dificuldades com a gravidez indesejada e esse é problema pertinente, que não pode ser ignorado - as mulheres que recorrem às clínicas clandestinas correm risco de morte, ou seja, não vamos proteger as suas vidas?

4º) Tratar o aborto de forma análoga à pena de morte não faz sentido. Pelas mesmas razões acima delineadas, o agente criminoso não deixa de ser pessoa humana porque praticou um delito. Enquanto pessoa, faz juz ao gozo de seus direitos, porque nasceu com vida e, no caso do psicopata, exemplificado no texto, é pessoa com disfunção comportamental, que deve ser sujeita à pena de intervenção e acompanhamento psicológico e, talvez, psiquiátrico.

5º) Enquanto libertário, não posso conceber que minha vida pertença ao Estado. Minha vida pertence a mim e eu decido se a compartilho ou não com a Sociedade. A pessoa humana, com capacidade de se autodeterminar não é coisa e, dessa forma, não deve estar sujeita à intervenção de terceiros. E aqui surge um ponto de vista interessante: células são, sim, uma forma de vida. Mas saber quando há o ser humano, isso é uma questão mais elaborada. É por isso que existe a proibição do aborto, quando as células já se desenvolveram ao ponto de formar um feto e, nos países aonde o aborto foi descriminalizado, ainda persiste a proibição da remoção do feto.

Por fim, quebrando toda essa seriedade, fico pensando no dia em que proibirão a remoção das bacterias da flora intestinal com o uso de laxantes. Afinal, elas também têm a sua residência em nosso corpo e são elemento comum à condição de humano, mamífero, vertebrado etc...
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P.S. - Errei: no item 3º) os temas discutidos são o "problema das drogas" e a "clandestinidade do aborto"; o tema "pena de morte" é abordado no item 4º).

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Aborto: uma questão feminina e íntima

Não são poucas as vezes que o Estado é chamado a legislar em áreas em que não deveria. Também não são poucas as vezes que ele é chamado e não cumpre seu dever. Uma dessas matérias diz respeito ao aborto. Infelizmente, os tais "valores morais" da "sociedade brasileira" - que deveriam ser chamados corretamente de moralismo, com todas as implicações técnicas dessa categoria específica - passam por cima da prática social e ignoram os verdadeiros problemas vividos pela Sociedade (sim, com "S"). Senão, vejamos.

A decisão de ter um filho ou filha é, antes de mais nada e absolutamente, um direito da mulher; é ela que, enquanto indivíduo, decide se carregará um fardo ou um filho(a) amado(a). Mas existem outras considerações transversais sobre esse direito, que tocam tanto seu exercício quanto sua disposição. Em sua luta pela emancipação, a mulher ainda está sujeita às intervenções sociais de uma Sociedade machista e presa ao passado (ou presa ao discurso cego do machismo chauvinista, religioso, político, econômico etc.).

Primeiro, porque o Estado não pode, ou não deveria poder ter ingerência sobre o corpo da pessoa humana (sim, interferência direta, física); não parece que exista qualquer poder de império que justifique a proibição da remoção de células embrionárias do útero de uma mulher; punir o aborto é, portanto, um ato autoritário injustificado e ilegítimo. Nesse sentido, discutir "quando começa a vida" é tanto ou mais improdutivo do que discutir o "sexo dos anjos", ou tentar imaginar o que pensa um bactéria, ou saber "o que estava pensando o espermatozóide quando fecundou o óvulo". A vida começa a todo instante, em todos os lados, mas sua sustentabilidade depende do ambiente aonde está inserida: se as condições forem favoráveis, ela resiste, se não, perece.

Segundo, a gravidez é uma decisão de foro íntimo, na qual incidem diversas questões: emocionais, racionais e, acima de tudo, sociais, que partem sempre do indivíduo à Sociedade; aqui não há espaço para o monólogo de matriz judaico-cristão e, até mesmo se houver, a rejeição social (ou o tal "pecado") não pode justificar nenhuma caça às bruxas (se bem que alguns setores religiosos adorariam a volta de uma qualquer Inquisição...). Saber que uma gravidez indesejada prejudica o bebê é um dos argumentos iniciais a demonstrar a importância do bem-estar da mãe; não se pode conceber qualquer discurso que ignore esse fato. Ainda, é primeiramente a mãe que analisa quais são as condições materiais em que a criança será gerada: com ou sem o apoio paterno, nesta ou naquela condição de vida, com este ou aquele suporte familiar. Depois, quando a questão passa às condições de vida em Sociedade, convém perceber até que ponto uma comunidade deve ter o poder de decidir sobre a vida individual, quando essa decisão incide sobre assuntos que não interferem em nada no equilíbrio dessa Sociedade (a não ser, mais uma vez, que estejamos a falar de mais um "contribuinte", que dará o seu dízimo a esta ou aquela "Instituição"). É por essa razão que o aborto deve ser praticado nos estágios iniciais da gravidez, evitando-se a remoção de um feto já formado.

Terceiro, por ser um direito e uma decisão personalíssima, a penalização da mão que pratica o aborto vai de encontro a uma série de problemas sócio-econômicos, que só são vividos por aqueles que não podem sustentar uma criança advinda de uma gravidez não planejada ou indesejada. Assim, os únicos casos em que o aborto é permitido no Código Penal brasileiro figuram como um mínimo absolutamente necessário, que precisa ser acrescido de outras considerações; não parece justo nem mesmo inteligente impor que uma nova vida se transforme num transtorno financeiro quer à mãe, quer à família, ou, de uma outra perspectiva, que essa nova vida surja num ambiente no qual não conseguirá sobreviver. Não é preciso nem apelar às teorias neo-maltusianas para justificar uma coisa que é óbvia: a vida precisa de condições materiais para resistir ao desafio da sobrevivência; esta é uma decisão a ser tomada por aqueles que garantirão este sustento!

Em quarto lugar, mas não menos relevante, está a questão principal disto tudo: é preciso investigar quais foram os verdadeiros motivos que impediram a despenalização do aborto, pela não supressão do artigo 174 do Código Penal. Os passos para isso seriam os seguintes: avaliar a posição sócio-econômica, o grau de instrução ou nível educacional e a origem partidária dos deputados que votaram contra a alteração e, também, inquiri-los sobre os critérios sócio-econômicos e técnicos (medicina) que fundamentaram a sua decisão. Porém, desde já é possível dizer que esta é uma tarefa ingrata e infrutífera, pois o que realmente convinha era saber qual é o apoio que eles recebem das camadas populares nisto tudo.

Por isso, penso que a rejeição à prática do aborto deveria ser investigada junto à população, pois é ela que sofre (ou não?) na pele, nos ossos e nos úteros, com a incompetência daqueles que defendem (sic) seus interesses. Seria preciso iniciar um amplo debate com a Sociedade brasileira, colhendo diretamente do povo a sua opinião sobre esse assunto e, depois, organizar um referendum sobre o aborto - como fazem os países democráticos. Ou não?

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P.S. - Eu não sou contra, nem a favor do aborto. Quem tem que ser contra ou a favor é a pessoa que está grávida. Digo isso com tranquilidade: em Portugal, "a interrupção da gravidez por opção da mulher pode ser efectuada nas primeiras 10 semanas de gravidez, calculadas a partir da data da última menstruação" (http://www.aborto.com).

quinta-feira, 8 de maio de 2008

O direito de ter direitos

Durante o mês de março deste ano, tivemos oportunidade de acompanhar duas palestras nos trabalhos do programa de doutoramento das faculdades de Direito e Economia da Universidade de Coimbra. Ambas tiveram como núcleo duro a discussão do "paradigma zero" ou Estado de Direito, nos moldes da mais clara ideologia liberal. Entretanto, nenhuma delas foi capaz de oferecer respostas às questões quer do pluralismo jurídico, quer da participação democrática, quer da materialidade constitucional, posto que os dois modelos propostos concentravam-se no argumento da "Constituição formal".

Com efeito, o primeiro colóquio, do senhor doutor professor Kafft Kosta, presidente do Tribunal Constitucional de Guiné-Bissau, trouxe-nos o atual modelo de formação estatal que se implanta naquele país e o cenário antropológico no qual se tenta, a todo custo, implementar um modelo jurídico estatal centralista e "democrático". Um dos gráficos apresentados procurava demonstrar a complexa teia social na qual se assenta a composição populacional guiné-bissauense; a constante mobilidade de pessoas para além dos limites da Guiné-Bissau, com a transposição de fronteiras com Senegal e Guiné, de já confrontou a idéia de territorialidade na aplicação do Direito, posto que, como se sabe, as fronteiras estatais africanas foram uma criação colonial e não refletem, de maneira alguma, o sentimento identitário das diversas formações étnicas ali existentes.


Outro ponto interessante no debate foi, além da formação étnica, a existência de uma série de "sistemas jurídicos" que oferecem diferentes normas de conformação social, que impossibilitam a aplicação de um Direito estatal puro; necessariamente, quer em nível jurisdicional, quer em nível de relações intersubjetivas, o pluralismo jurídico de facto impõe não só ao legislador, como, também, ao julgador a consideração de normas de uso comum que, muitas vezes, conflitam entre si e contrariam o próprio Direito de origem estatal. Além disso, do ponto de vista político, o corpo social guiné-bissauense possui uma série intrincada de poderes sociais: o poder familial, religioso, tribal e o patriarcal; a articulação dessas várias esferas de poder também contraria a criação de um sistema representativo liberal-democrata: como auferir legitimidade representativa sem a participação política desses centros de poder?

Por fim, mas não menos importante, foi constatar que o palestrante confessou o claro interesse em transpor as barreiras culturais, com o objetivo de artificializar a criação do "paradigma zero", pela importação de conceitos eurocentristas que dificilmente têm total aceitação no continente europeu; não seria isso uma clara demonstração de subalternalização do processo de formação social guiné-bissauense aos parâmetros neocoloniais europeus?

O segundo colóquio foi proferido pela senhora doutora professora Wei Dan, da Universidade de Macau, sobre a democratização da China e a formação do Estado de Direito. Na visão da palestrante, esses dois modelos se sobreporiam ao "direito folclórico" chinês (ou direito consuetudinário) e ao Estado centralista e anti-democrático chinês - mudanças que tornariam a China apta à entrada no mundo globalizado. O que chamou a minha atenção nesse discurso foi a inferiorização do pensamento filosófico chinês em relação à matriz jurídico-filosófica européia, porque, se bem vemos o assunto, existe uma forte componente conseutudinária, portanto amplamente legitimada pela prática social, a ser paulatinamente desconstruída nesse processo; em áreas tão diversas como o Direito de Família ou o Comercial, o conjunto de práticas sociais (construídas através de milênios!) terão que dar espaço à regulamentação jurídica europeísta, de modo a proporcionar a integração chinesa no comércio mundial.

Isso para não falar que a expressão "direito folclórico" da palestrante parece dar uma manta de precariedade ou "barbárie" àquilo que, na verdade, representa o common law chinês. Por exemplo: é bem sabida a pouca influência ou ilegitimidade do Direito estatal nos assuntos de Direito da Família, pois regras de casamento, sucessão, poder familiar e etc. encontram-se excluídas da competência normativa estatal de maneira quase absoluta. Outro exemplo: o Código Comercial de Macau, aprovado antes da entrega de Macau à China, em 1999, é, por si só, uma clara demonstração de que a Europa assegura para si um domínio jurídico nas relações que trava com a China, antes de pôr um verdadeiro fim à colonização; a nova onda neocolonial é, portanto, mais sofisticada que a anterior, mas ainda reserva para si as mesmas práticas de controle e dominação política.

O que nos leva a concluir que, embora os pensadores, doutrinadores e acadêmicos europeus reservem para si uma maior flexibilidade conceitual, com vista a conceber um Direito cada vez mais democrático e participativo, os centros de poder europeu ainda exportam o modelo do formalismo jurídico para além de suas fronteiras. Essa forma ideológica de conceber o Direito também tem fortes reflexos no Brasil e, porque não dizer, no Sul Global: não são poucos os autores que propugnam um Direito dogmático, desapegado das influências trans e multidisciplinares que se multiplicam nas academias européias, ou seja, enquanto a Europa entra na pós-modernidade, os países do Sul Global estão condenados à modernidade eterna. Ora! De dogmas ainda vive a religião!

No esteio dessas idéias, o desafio que nos foi proposto pelos coordenadores do curso "Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI" ainda está por ser resolvido: como articular a idéia de que é preciso um "direito de ter direitos", visto que não só o "paradigma zero", mas até o Direito (moderno) não se mostram mais aptos a oferecer respostas às novas composições supranacionais? Qual é a democracia para o século XXI e como poderá existir qualquer cidadania, após a transposição dos espaços nacionais e a eliminação das fronteiras abissais? Esses são os fenômenos trazidos pela globalização que, acima de tudo, já deixou de ser um evento meramente econômico, para alcançar áreas tão diversas como a comunicação social, a formação cultural, os choques entre civilizações e assim por diante.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

A "ciência" e a dominação do social

À partida: não existe tal coisa que se possa chamar "ciência" social ou humana. O que se pode observar é que a palavra "ciência" ganhou, na modernidade, um significado cultural útil na tarefa de oposição à cultura (um paradoxo); é, portanto, um construto social. Como seria possível afirmar que exista um qualquer "conjunto organizado de conhecimentos baseados em relações objectivas verificáveis e dotados de valor universal" nos estudos humanísticos e sociais? Como tal coisa poderia existir? Existe algo aplicável universalmente ao comportamento humano (imaginário, psicológico, identitário ou cultural)?

O que se verifica é que houve (e há) uma série de construções ideológicas que, antes de mais nada, servem à estruturação de sistemas de controle social e apreensão da realidade; esses esquemas ideológicos têm seus centros de produção numa estrutura hierarquizada de produção do "saber" que, ao longo da História, vem afirmando uma série de discursos hegemônicos e sendo reproduzido nos mais diversos níveis da vida em Sociedade. A par de qualquer justificação sensível, elas se fundamentam em lógicas pré-definidas chamadas "métodos". Ora, o método tem por objetivo principal elimiar quaisquer influências exógenas que sejam capazes de comprometer uma análise "verdadeira" do objeto de estudo; sendo o conjunto de pressupostos ou de "regras-do-jogo", a definição de um método nas "ciências" sociais e humanas não faz outra coisa senão desumanizá-las, posto que inviabiliza a detecção de um ou vários outros fatores que comprometeriam a consecução de uma conclusão "neutra e imparcial".

Ora. Não conheço uma única pessoa que seja neutra, ou imparcial, porque simplesmente essas coisas não ocorrem na vida humana. Até mesmo um matemático, diante de um teorema, age com parcialidade - ou não quer ele resolver seu problema? Existe algum juiz no mundo que seja imparcial (que possa se despojar de toda a sua experiência pessoal no julgamento de um caso)? Existe alguma ação neutra (as ações não têm, afinal, objetivos, alvos, metas)? O ser humano age por impulso, por paixão, tem essa ou aquela moral, esse ou aquele comportamento (ética) e, por uma razão qualquer, colhe da vida coletiva aquilo que convencionou-se chamar cultura. Esse é o meio no qual, necessariamente, o ser humano existe e, consequentemente, no qual se desenvolvem as pesquisas ou estudos sociais. Vamos aos exemplos.

Na Antropologia, é mais que sabido a influência da biologia na confecção das mais absurdas teorias sociais, como foi o caso do racismo. Com efeito, no seu projeto imperial de colonização, as elites européias fizeram da idéia de raça uma fronteira intransponível de subjugação de milhões de pessoas; quer a idéia do "bom nativo" de Voltaire, quer a desumanização do negro africano (com o apoio da Igreja Católica), foram as justificações para os mais crueis e nefastos métodos de escravização das populações humanas. Hoje, o racismo ainda alimenta as mais estúpidas e, porque não dizer, a-científicas teorias de exploração e submissão dos povos não-europeus; desde as mais infundadas afirmações de inferioridade genética, até as mais esdrúxulas explicações para o insucesso sócio-econômico de várias identidades étnicas; e essas lógicas funcionam em vias transversais, amparada ainda pelo infundado conceito de "nação".

No Direito, a dogmática jurídica reduziu o espectro retórico do Direito a elaborados esquemas sistêmicos, que matematizaram não só a sua operacionalização, mas tornaram-no um elemento de difícil apreensão social. Essa abstração serviu como a principal barreira entre Sociedade e Estado, pois o discurso jurídico (inalcansável e alienígena em relação às práticas sociais) submeteu as práticas sociais ao ordenamento jurídico elaborado nos gabinetes de legisladores e nas Faculdades de Direito. Na promoção do sistema de colonização europeísta ao redor do mundo, o sistema do indirect rule que funcionou em África, ou a transposição de ordenamentos jurídicos das metrópoles, como foi o caso brasileiro, construiram "castelos" em torno dos quais a população não tinha outro remédio, senão a submissão ao Império da Lei.

O que se pode observar é que, ao fim e ao cabo todos esses conceitos são "saberes esquisofrênicos" ou fragmentos de saber. Não há qualquer forma de avaliar a complexidade das relações humanas por métodos estanques ou com uma logicidade matemática, porque a vida em coletividade simplesmente não está sujeita à algebra ou ao pensamento abstrato puro; não existem verdades abstratas puras, posto que sua aplicação nos estudos humanísticos tem claros efeitos nocivos: a simplificação das interações humanas, pela simplificação dos métodos, condiciona os resultados de qualquer pesquisa nessas áreas. Ainda, nesses processos hierarquizados de produção do saber, não há interferência de formas de saber que, a priori, são excluídas e acabam por se constituir em discursos suprimidos - como é o caso do conhecimento socialmente produzido (cultura).

Não existe forma mais brutal de dominação do que aquela que se apodera do "saber" e isola-o nas "fortalezas intelectuais" do pensamento catedrático. Por isso, os espaços de produção "científica" não podem ser "higiênicos", ao ponto de "desinfetar" o ensino e separá-lo da influência popular e cultural. Quanto mais híbridos esses espaços de produção acadêmica, mais universal é o saber, e uma das formas de democratizá-lo é, antes de tudo, a desconstrução das barreiras ideológicas que são o fundamento dessa ilegítima apropriação.