terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Libertarianismo: deturpação do conceito de emancipação social

  • AS TESES DISCUTIDAS
O libertarianismo é uma corrente de pensamento que defende a destituição da figura do Estado, que seria substituído por um não-regime de auto-governo (self-government), através de unidades locais de organização social. Em sua gênese, apropria-se de alguns aspectos da teoria anarquista do século XIX, mas diverge quanto aos critérios de emancipação social porque não propõe uma ruptura com os sistemas de produção e apropriação da riqueza social - a despeito de propugnar a eliminação da figura do Estado. Seus teóricos (os economistas Ludwig von Mises e Milton Friedman são os grandes expoentes) partem da concepção norte-americana de federação e propugnam o desmembramento e fim do Estado de uma maneira genérica ou global.



Por quem sorri Friedman?
Dentre as "revolucionárias" ideias associadas a esses dois economistas, e aos libertarianistas, estão: o fim do Direito Tributário, a extinção das normas regulatórias que compõem o Direito do Trabalho e o Direito Previdenciário, a completa desregulação da economia (um retorno da ideia de mão invisível e da teoria das expectativas racionais, que auto-regulam o mercado) e o fim de todos os tipos de intervenção na liberdade dos capitalistas, como o Direito do Consumidor.

Até dá para fazer piada, caso prosperasse tal ideia no Brasil: o "terrível" exame da Ordem dos Advogados ficaria bem mais fácil, e haveria infinitamente menos reprovações, pois os estudantes estudariam apenas Direito Empresarial (que tem mais ou menos uns quatro modelos de petição, na segunda fase)... Mas, defender isso é querer "esticar demais a baladeira" e brincar com a inteligência alheia, ou não?

Para não dizer que Friedman era assim tão sinistro (sic), ele era favorável à liberação de todas as drogas (todas elas! Uáu...). Com certeza, a essas alturas, você deve estar se perguntando o que sobra, quando se desmonta o Estado... Sobram apenas as grandes corporações e multinacionais, que passariam a explorar economicamente todas as atividades antes reguladas e controladas pelo Estado - evidentemente, para quem poder pagar por elas: polícia, saúde, educação, corpo de bombeiros, correios etc. E, quem sabe, até o tráfico legalizado de drogas, que tal?

É cediço que existem diversos argumentos que amparam as teses acima ventiladas. Todas elas são embasadas em conceitos micro-econômicos que prospectam vultosos lucros e vantagens para aqueles que, detendo o poder econômico, puderem participar da divisão desse maravilhoso e rentável "bolo".

Entretanto, convém lembrar que a esmagadora maioria da população mundial (para não falar só a nível de Brasil) vive em condições precárias de subsistência -- o Sol não nasceu da mesma forma para todos. A não ser que esses senhores estejam a propor algum tipo de medida genocida -- daquele tipo de solução adotada no Brasil, décadas passadas, de resolver o problema da fome deixando que os miseráveis morressem de fome --, é de se concluir que bilhões de pessoas estariam automaticamente excluídas da participação de tão eficiente modelo, por uma simples razão: enquanto os Estados organizam a distribuição de serviços públicos de forma gratuita, as empresas privadas só fornecem serviços mediante a contra-prestação (pagamento). E somente se esses serviços forem lucrativos (caso contrário, são descontinuados).

Vamos relembrar uma das frases mais interessantes de Friedman: "Não se distribuem almoços grátis". Não? Essa é a proposta; um futuro tenebroso, no modelo libertarianista, quase eugênico e, sem dúvida, apelando à "seleção natural": aqueles que não forem aptos, sucumbirão.Solidariedade? Zero.
  • O FIM DO ESTADO
A priori, essa noção de emancipação por meio da destruição do Estado pertence às correntes do pensamento sociológico e revolucionário que tiveram por base não apenas as ideias iniciais de Jean-Jacques Rousseau, mas se desenvolveram décadas depois nos trabalhos de pensadores como o irlandês Edmund Burke, ou o russo Peter Alexeyevich Kropotkin. Mas essas correntes contemporâneas não trataram do anarquismo em primeira mão; a ideia de uma sociedade "sem-governo" remonta ao período clássico da Antiguidade, e as discussões em torno disso são milenares; Júlio César teria dito, na conquista do povo lusitano: "Que povo é esse, que nem se governa, nem se deixa governar?".

Porém, a História demonstra que um determinado povo, que tem a pretensão de habitar um determinado território, e viver sem a opressão de outros, deve organizar suas relações políticas de cooperação. Não há registro de nenhum agrupamento humano que tenha prosperado sem a organização de um governo. Até o termo "civilização" pressupõe um certo grau de organização sócio-político-cultural, com a divisão interna do trabalho e a consecução de objetivos comuns. Aqueles que não se organizam politicamente e agem sem cooperação e solidariedade são facilmente dominados por grupos mais fortes e/ou numerosos -- sucumbem e perecem diante da competição por riquezas sociais e recursos naturais.

Noam Chomsky, um dos mais respeitados professores do Massachusetts Institute of Technology, filho de imigrantes anarquistas ucranianos erradicados nos Estados Unidos da América desde o começo do século XX, em um debate com o ex membro do Partido Comunista, o francês Michel Foucault (falecido professor de filosofia, psicologia e história da Université Lille e da École Normale Supérieure), depois de muito debater o tema anárco-comunitário versus comunismo, admitiu que o atual estágio de organização social em torno da figura do Estado possibilitou à humanidade uma melhoria extraordinária na qualidade de vida das populações. Acrescentou, ao final do debate que, pondo-se fim à figura do Estado, as populações estariam sujeitas à ação da mafia e do crime organizado internacional que, dispondo de recursos financeiros e de armas, poderiam desestabilizar não só as pequenas comunidades, mas aquilo que se entende por "nações".
  • CRÍTICAS PONTUAIS AO LIBERTARIANISMO
A primeira e óbvia crítica ao libertarianismo é aquela que constata haver um projeto de submissão das populações às formas empresariais de organização das relações sociais. Nem se pode cogitar a possibilidade de um exército privado -- pois isso seria uma mera reprodução do Estado Absolutista, que concentrava poderes militares nas mãos dos aristocratas e do monarca --, nem se pode cogigar uma organização paramilitar com interesses determinados apenas pelo lucro. Pois. Como é sabido, a teoria libertarianista não promove, antes, pelo contrário, repele qualquer compromisso solidário de bem estar dos povos. Apenas os interesses individuais são garantidos. Conseqüência de uma deturpação do pensamento neoliberal, o libertarianismo foca sua atenção apenas no valor liberdade; e se essa liberdade for garantida aos acionistas, tudo é permitido, inclusive a submissão de uma população desarmada ou desorganizada militarmente.

Essa mesmo desprendimento do libertarianismo com o bem estar populacional, levanta a segunda observação crítica: ele atenta contra os serviços de primeira necessidade que não geram lucros. Vejam-se alguns exemplos: (a) a construção de estradas pode ser considerado um investimento econômico, e pode trazer bons lucros, se for direcionado ao escoamento da produção e da organização de acesso às empresas, fábricas e comércio, mas as populações de baixa renda se veriam desprovidas desse recurso, a não ser pela atitude caridosa dos proprietários dessa "nova organização política", ou se eles mesmos as construíssem; (b) os serviços públicos de saúde desapareceriam, dando lugar a um tipo de prestação lucrativa que só admitiria o acesso a esses serviços por aqueles que pudessem pagar por eles; (c) quem não pode pagar por segurança, fica sem polícia, sem bombeiros, sem salva-vidas, e se você acha que a polícia pública é violenta (mesmo vinculada a preceitos constitucionalmente assegurados), imagine uma polícia que é comandada apenas pelo dinheiro - já ouviu falar na expressão capanga, ou jagunço?

Em terceiro lugar, existem aqueles argumentos sobre a corrupção e a burocracia. Até onde se sabe, a corrupção é um mal registrado pela humanidade desde tempos imemoriais, e ela florece em igual proporção à omissão dos administrados, não sendo um privilégio de nenhuma sociedade em particular. Se no Estado Democrático, que pressupõe a participação da população nas decisões governamentais, há corrupção, pense nesse "novo modelo", no qual não há participação! Seria a corrupção em absoluto, pois não haveria como averiguar o bem comum -- apenas o bem empresarial. 

Na realidade, o bem comum seria somente a medida do que é consumido; isso levaria à seguinte hipótese: havendo consumo, há bem estar, continua-se com a prática; não há consumo, não há bem estar, ajustam-se as práticas. Entretanto, o bem estar não é meramente o ato de consumir produtos; é o ato de poder participar igualitariamente de uma Sociedade, na produção de cultura, de política, e de bens também, além de outras coisas. Além do mais, qual o destino de quem não puder consumir aqueles produtos citados acima (educação, saúde, transporte, segurança)?

Convém salientar, por falar em Democracia, que Suécia, Suiça, Finlândia (...) são Estados democráticos, quer dizer, não existe só a democracia à brasileira, ou à yankee. Não existe democracia só em países pobres. E todos os povos ricos e desenvolvidos preservam as suas instituições estatais, protestam contra os desmandos e abusos, cobram e fiscalizam seus representantes.

Finalmente, porque faz-se tarde, a despeito de ainda haver uma tendência de sobrevalorização do modelo norte-americano de cultura política -- negligenciando várias outras experiências sócio-políticas ao redor do planeta --, a teoria tem se alastrado em alguns círculos acadêmicos dominados pela elite econômica e pelos seus seguidores. Faz parte de um sistema de crenças, que não propõe efetivamente nada de incrível e nem de novo (considerada sua existência paralela ao neoliberalismo), visto que desde os anos de 1980 que existem discussões sobre a privatização de todos os espaços públicos e livres do mundo.
  • CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o exposto, ficam alguns questionamentos: como vai se chamar a instituição que surgirá em substituição ao Estado? Quem mandará nela? Pode-se pensar em BRASIL S/A? Quem seriam os acionistas? Quanto você tem no bolso? Hum...

O que leva à seguinte conclusão: o modelo libertarianista garante a máxima liberdade para aqueles que detém recursos econômicos, e a máxima opressão aos desprovidos. A proposta é uma deturpação do conceito de emancipação.

O conceito de emancipação trabalha com a ideia de mudança social que promova a melhoria das condições de vida da população, como um todo, por meio do sopesamento de valores compartilhados a nível social. As sociedades que conseguiram avançar tecnologicamente, economicamente e garantiram melhores índices de bem estar às suas populações foram exatamente aquelas que alicerçaram suas instituições na solidariedade, no controle e na fiscalização de seus Estados nacionais. O resto é presunção de economista.

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P.S.: Talvez essa ideias sejam bastante sedutoras ao jovem desavisado, ou àquele aluno de Direito meio preguiçoso -- que não gosta de estudar Ciência Política, Filosofia, Sociologia... que tem pavor de Direito Constitucional etc. Talvez, a ideia de acabar com vários ramos do Direito fosse até interessante, principalmente para o exame de Ordem... Mas, no fim disso tudo, imagine a concorrência para protestar um cheque! #ficaadica